
Cremos não ser possível uma leitura do contexto em que nos encontramos sem situá-lo enquanto sequência do pós-golpe engendrado sobre o governo Dilma Rousseff - na prática, sobre todos brasileiros - e as consequências que se sucederam; ainda mais cremos ser importante situar esta nossa análise a marcada pelo olhar desde nosso lugar social e de militância junto aos povos indígenas e aos movimentos sociais do campo. É a partir deste locus que desenvolveremos nossos apontamentos e pretendemos abordar o que entendemos, para além de um momento conjuntural, a mudança de contexto em que nos encontramos no Brasil.
Para partirmos de uma elemento visual, ou da paisagem – e a entendendo aqui enquanto resultado de múltiplas determinações – lembremos as imagens vinculadas por diversos meios de comunicação no dia 25 de abril de 2017, mostrando indígenas de diversos povos em Brasília correndo de bombas de gás de pimenta disparadas pela Polícia Legislativa do Congresso Nacional. Esta ação encerrava um momento de manifestação enquanto o espelho d’água próximo ao Congresso Nacional se redesenhava repleto de caixões feitos de isopor. Nada mais icônico em um processo que não se iniciou agora.
Desde 2012 quando o Congresso Nacional aprovou as mudanças no Código Ambiental, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), também conhecida por “bancada ruralista” tirou da gaveta a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de número 215, proposta no ano 2000 pelo deputado Almir Sá, então Deputado Federal por Roraima pelo Partido Progressista Brasileiro (PPB)[1]. Almir Sá à época era também presidente da Federação da Agricultura do Estado de Roraima, tendo exercido o mandato desta organização ruralista nos períodos de 1993-1996, 1997, 2000 a 2003. Este deputado, segundo matéria assinada por Izabela Sanchez, foi um dos parlamentares que atuaram na perspectiva de impedir a homologação em área contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, conhecida pela disputa entre arrozeiros e outros invasores e os povos indígenas Taurepang, Patamona, Igarikó, Wapichana e Makuxi. Após uma disputa de mais de trinta anos a terra foi homologada em 2009.
Destacamos a PEC 215 pois, entre outras iniciativas, propunha o deslocamento da atribuição das demarcações da terras indígenas do poder Executivo para o Legislativo. Visando mudanças nos processos de demarcação, pelo menos outras dez Propostas de Emendas à Constituição foram apensadas à PEC 215. O texto que finalmente seria aprovado em outubro de 2015 pela Comissão Especial, criada no âmbito da Câmara dos Deputados, já estava ainda mais amplo, juntando outras proposições como a PEC 237, que possibilitará, se aprovada, o arrendamento de até 50% de uma terra indígena às atividades do agronegócio; o texto também aplica para todas as terras indígenas as condicionantes aplicadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao julgar o processo relativo a Terra Indígenas Raposa Serra do Sol que, entre outras, impede a “ampliação de terras indígenas demarcadas”. Embora os argumentos ruralistas e o Parecer 001/2017, construído em articulação entre FPA e a Advocacia Geral da União, não há vínculo entre as condicionantes estabelecidas pelo STF para o caso Raposa Serra do Sol e sua aplicação para as demais terras indígenas. Esta é uma interpretação ainda em disputa no Poder Judiciário, mas o próprio Supremo já deu diversos sinais de que as chamadas condicionantes se restringem ao caso Raposa Serra do Sol e Ministros em julgamentos sobre outros casos, a exemplo do ocorrido no dia 16 de agosto, negam o caráter vinculante. Segundo o Secretário Executivo do Cimi, Cleber Buzatto, “o Parecer anti-demarcação 01/2017 é uma peça política que resulta de um acordo espúrio entre o governo Temer e a bancada ruralista do Congresso Nacional”.
Neste processo que vem se aprofundando, mormente desde 2013, está em pauta a destruição dos direitos dos povos indígenas sobre seus territórios, direitos conquistados em 1988 com a aprovação do artigo 231 da Constituição Federal que reconhece os direitos originários dos povos indígenas sobre seus territórios. Mas no bojo e para além desta destruição de direitos está a possibilidade de abrir-se à exploração capitalista terras então fora do mercado; ainda mais por serem terras que, preservadas em sua maioria por povos, mantém solos, água, minérios, madeira e outras riquezas naturais que fazem brilhar os olhos dos capitalistas de plantão. Este olhar, não podemos deixar de lembrar, também se voltaram para as terras dos quilombos, muitas destas reivindicadas e ainda sem o reconhecimento da Fundação Palmares, que é o primeiro passo para a titulação coletiva destas terras para as comunidades quilombolas.
As bombas de gás e a força do braço armado da Polícia Legislativa e da Polícia Militar do Distrito Federal não eram desconhecidas dos indígenas, mesmo nos tempos de governo mais “à esquerda”. Contudo, as alianças já presentes no governo Lula da Silva e Dilma Rousseff agora se aprofundam. Tornaram-se ainda mais explicitas no início do governo Temer, quando este inicia a efetivação da proposta a ele entregue pelos ruralistas em abril de 2016. Esta proposta, chamada “Pauta Positiva” da FPA, apresentava dentre as primeiras “necessidades do agronegócio” a chamada por eles “segurança jurídica”. Temer, como um bom maître, após assumir ilegitimamente o cargo de Presidente participa de atividades do agronegócio, mantendo um discurso não muito diferente de Lula, embora não tenha chamado o setor de “heróis”. Na posse da nova diretoria da FPA, em fevereiro de 2017, Temer afirmou: “quando dizemos que o Brasil tem rumo eu olho na direção do agronegócio”. Ninguém menos tomava posse naquela data que o deputado ruralista do PSDB de Mato Grosso, Nilson Leitão, presidente da Comissão Especial da PEC 215/2000 e investigado por atuar junto aos invasores da Terra Indígena Marãiwatsédé, do povo Xavante, localizada no nordeste de Mato Grosso.
Nesta intima relação entre poderes, temos um arsenal de ataques bem articulados: no poder Legislativo, mudanças que buscam retroagir em direitos dos povos; no Executivo, além da paralisação das demarcações uma disposição e ações que fortalecem setores anti-indígenas; no enfrentamento direto, o braço armado, disposto a bombardear literalmente qualquer manifestação ou resistência que coloquem em xeque a suposta nova (des)ordem e progresso em pleno processo de implementação pós-golpe.
[1] O PPB foi fundado em setembro de 1995 a partir da fusão do Partido Progressista Reformador (PPR) com o Partido Progressista (PP) e o Partido Republicano Progressista (PRP). Liderado pelo então prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, teve como primeiro presidente nacional o senador catarinense Esperidião Amin, que presidira o PPR. Em 4 de abril de 2003 voltou a chamar-se apenas Partido Progressista (PP).